biblioteca:
floresta
Curadoria: Galciani
Neves, em parceria com Simone Moraes,
artista em residência no MARP, durante o processo de desempacotamento
da biblioteca de Pedro Manuel-Gismondi
Assistente
de curadoria e produção: Isabella Assad
Expografia: Marcus Vinícius
Santos
Design
gráfico:
Fernanda Porto
Edição
e revisão de textos:
Divina Prado
Artistas: Aline van
Langendonck, Andrea Tavares, Fernanda Porto, Janina McQuoid, Laura Berbert,
Lívia Aquino, Lucia M. Loeb, Maíra Dietrich, Mayra Martins Redin, Natalie
Salazar, Paloma Durante, Raphaela Melsohn, Raquel Stolf, Regina Parra, Renata
Cruz, Santarosa Barreto, Simone Barreto e Simone Moraes
Ensaio para começo de conversa: “deixa
sem solução o grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira
natureza da ficção”[1]
Arrancamos
frases para torná-las nossas próprias e desenhamos um problema. E traçar um
problema, de maneira distinta ao que nos foi imposto historicamente, ao menos nas
condições aqui sugeridas, dispensa convicções, comprovações e toda sorte de
nota assertiva como desfecho. O que não pressupõe um falar sem jeito, esvaziado.
Trata-se de um problema que acontece como devaneio, com tudo o que um devaneio pode
ter de provocativo, de inevitável, de urgente. Escrevemos, então: devaneio – estado
de combate contra o que quer nos paralisar. Devaneio – gesto nítido e incisivo de
contestação no tempo e na vida cotidiana. Devaneio – para revolver tudo que nos
miniaturiza a existência. Devaneio – soco em ponta de faca. Dito assim, compartilhamos
um problema/devaneio: qual ação possível, qual letra possível, qual
língua/corpo possível pode ser palavra, e, mais, pode ser narrativa conjugada
no feminino?
Se toda
a nossa formação discursiva reproduz e reafirma um sujeito autor sempre no masculino,
a exceção (a citar: a nota de rodapé, o ínfimo espaço no fim do
espetáculo ou uma espécie de generosidade vangloriada em historiadores e
críticos ao fazer reviver “uma mulher brilhante, porém não reconhecida em sua
época”) é o que nos foi “ofertado com dignidade”, um descarado prêmio de
consolação para nos cerrar a boca. Ofertaram-nos também textos que – disseminados
largamente e cujas fontes ainda mais amplas e tão retificadas, quanto retificadoras
– definem e informam sobre um fazer literatura e, dentro da mesma lógica,
acerca de uma produção artística, científica, política como êxitos indubitavelmente
autênticos do agente que ocupa o topo da cadeia alimentar.
Mesmo ainda
longe de desbancar inteiramente as boçalidades machistas que engendram os
padrões de exclusão da mulher das forças e lugares de trabalho e uma já
pressuposta eleição do homem como autor dos fazeres mais dignos de serem
sublinhados, esse problema/devaneio desponta e alavanca-se em forma de desvio. São
ressignificações subversivas e autorias radicais que se materializam nessa
mostra como práticas narrativas, exercícios ficcionais, invenções tradutórias,
fabulações, dizibilidades, apropriações do universo da bibliofilia, refeituras
de texto, da matéria da palavra, do dito e não-dito em instâncias amplas,
diversas, impuras, enfim, poéticas e pulsões criadoras de 17 artistas mulheres.
“Fico besta quando me entendem[2]”
ou recusar a literatura do outro
A mostra
biblioteca: floresta acontece no MARP inscrita nas obras de Aline
van Langendonck, Andrea Tavares, Fernanda Porto, Janina McQuoid, Laura Berbert,
Lívia Aquino, Lucia M. Loeb, Maíra Dietrich, Mayra Martins Redin, Natalie
Salazar, Paloma Durante, Raphaela Melsohn, Raquel Stolf, Regina Parra, Renata
Cruz, Santarosa Barreto, Simone Barreto e Simone Moraes. Onde nos reconhecemos
parceiras, arquitetamos um lugar de encontro. E é nesse lugar de encontro, que
também é de ebulição, de insistência e de perturbação, que criamos um ar possível
para inventarmos o que está dentro, fora da palavra, em fluxo; e onde podemos sentir
o inflamável embate arte/literatura.
A saber,
nossas deambulações. Movimento 1: conversa-convite para adentrar os
desdobramentos de uma biblioteca sendo desempacotada – o pó, a primeira
palavra e a derradeira, escrita de terra, floresta de livros. Movimento 2:
espiar em nossas próprias estantes e cabeceiras quem estamos lendo, um espelho
implacável, um fundo de gaveta revelador – somos poucas entre nós mesmas.
Movimento 3: o que perseguimos quando estamos pensando em literatura, ficção,
narrativa, poéticas artísticas, lugar de fala?
Sugerimos,
então, que pensemos na ideia de explosão, seguida de borramento. Uma
tentativa de negar as categorizações de linguagens e abrir-lhes linhas de fuga,
sair de um lugar para outro, destituir as fronteiras, e, assim, desestratificar
suas geografias. Mover-se ao mesmo tempo em que se movem as coisas e espaços em
torno de si. Arte/Literatura: uma labuta hibridizante, que aniquila limites ao
passo que mantém comunicantes e transbordantes essas linguagens.
Em
tempo, é preciso esclarecer que, em volta dessa vasta e plural contaminação de
procedimentos, as obras apresentadas estão livres de qualquer tarefa instrumentalizadora,
seja no campo da arte ou da literatura, e não carregam nenhuma intenção de
elaborar uma gênese dos horrores de nossas privações (destas já bem sabemos e
seguimos juntas, em alerta). Ainda assim, podemos nos arriscar a pensar que,
atravessando essas autorias, há uma modulação comum e constituída
subjetivamente: desmandar o esquema de dominação e exclusão que nos colocou à
margem e arquitetar junto com o público inquietações acerca de e para além de
um problema feminino/feminista[3].
A vontade é: agir na margem e em outras tantas, infiltrar e gerar frestas no
epicentro, navegar em direção ao embate contra as brutalidades patriarcais e masculinizantes,
tendo a arte e a literatura como prática em que nos arriscamos entre a falha
e a potência.
Olhando-nos
de frente, os pensamentos insinuam-se em alguns campos de procedimentos: invenção
de uma escrita, quando o silêncio é fala ou o texto é coreografia/procedimento
do corpo, percepção e relato de um lugar/experiência ou ainda matéria-prima
manuseável; rasurar, deglutir, esquartejar e apenas ter o livro, quando
ações evidenciam o livro como contêiner da literatura, a ser fragmentado,
apropriado, recalculado ou quando exteriorizam o texto para além desse espaço; deslocar
a palavra, transmutar seu contexto, como não-resposta ao autor, como teima,
como audácia ou assassinato da literatura.
Assim,
as artistas construíram fendas no gozo da linguagem literária, ora negando uma
prática burocrática da tradição artística (pendular, enfadonha, devedora a
sabe-se lá quem ou quê), que, assim, se orienta mais pelo fato de corroer e
transgredir uma voz original e queimar seus restos; ora inventando a sua
própria prática ficcional em tarefas estrangeiras à literatura (novamente, cabe
aqui: explosão e borramento).
Quando
negam: os gestos
são de reconstituir tudo livremente à própria vontade e critérios, aderindo a
irregularidades, vulgaridades, imprecisões; desfazendo os chãos seguros,
arranhando as estantes e paredes onde figuram imóveis e sábios os livros e
desnudando seus autores e ornamentos textuais. São inscrições de fratura
crítica e interdição do autor. Não menos séria, tampouco menos rigorosa, há
também que se discutir uma certa falta de pudor, como princípio criativo, que é
propriamente o rigor dessa urdidura tradutória: crítica e criativa, “trans-tudo”,
poética e política, como uma outra forma de (des)continuidade. Daí que se nega
para fazer viver um outro instante de arte/literatura, pois até o que se supõe
imitação é uma simulação que contraria o conteúdo e lhe dá como reação a mera
ausência. Esses procedimentos são fatos imagéticos, que, talvez, nunca, em seus
piores pesadelos, sonharam alguns desses autores citados/traduzidos nas obras:
serem violados, vendo suas obras esquartejadas, refeitas, “re-editadas”.
Quando
o gesto é de invenção:
exercícios que ampliam a elementar matéria da escrita/leitura e duvidam
do livro como sequência de espaços. Nesses processos de produção, parece não
haver um primeiro ou autêntico substrato da literatura, mas o que interessa é
inaugurar um fazer próprio, é esquecer que há formas reconhecíveis e praticadas
no campo da arte e da literatura, é descontinuar a ordem que rege as normas
de sobrevivência do texto. Assim, o texto, a narrativa, o gesto de ficção
transborda para o espaço, perfurando poros e afetando os corpos.
Onde é possível arder, “nunca
mais te disse uma palavra”[5]
Uma floresta
é um ecossistema intrinsecamente inflamável: sua cobertura é rica em carbono, o
clima seco pode afetá-la, raios e atividade vulcânica interpelam sua dinâmica.
O fogo tem um efeito evolutivo na vida de uma floresta, renovando seu
funcionamento e equilibrando o convívio entre as espécies. Um fantástico e
minúsculo conto[6]:
A
história de uma floresta traz consigo a história de sua sobrevivência ao
fogo. Suas perdas arderam em chamas e se apagaram, plenas em seus sumiços. Nas
cinzas, outras tantas árvores vieram. Quem está diante de uma floresta,
confronta-se com uma estranha e dolorosa autonomia, com uma força autodestrutiva
por livre arbítrio, um desejo incendiário sem culpa, um ímpeto arrasador de si.
Daí, que uma biblioteca: floresta é uma zona selvagem e quente. Feita de seres
perecíveis, que escapam ou não das ameaças corruptivas, do gesto desleixado à proibição
da leitura. Vejam, é literatura, é narrativa, é ficção. E ler é ver tudo como
ficção, é inflamável e pode queimar as suas mãos.
[1] Trecho de “Um teto todo seu”, de
Virginia Woolf, 1928.
[2] Título do livro de entrevistas
realizadas com a escritora Hilda Hilst, entre os anos de 1952 a 2002.
[3] Em linhas curtas, é preciso
deixar claro: “A complexidade do conceito de gênero exige um conjunto
interdisciplinar e pós-disciplinar de discursos, com vistas a resistir à
domesticação acadêmica dos estudos sobre gênero ou dos estudos sobre as
mulheres, e a radicalizar a noção de crítica feminista” (Butler, Judith P.
Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2017).
[4] Trecho de “Falando em línguas:
uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, de Gloria Anzaldúa,
1980.
[6] Entre os braços
da imaginação e a memória, uma biblioteca: floresta pode rimar com muitas
associações visuais, até oníricas. Não queremos destruir toda uma pluralidade
de elucubrações, mas consideramos importante expor como essa ideia tornou-se
uma flecha norteadora neste projeto de exposição.
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